Não há negros no Brasil, por Bruno Peron

Um complexo debate étnico-racial
Arquivo JBO/MaurícioMaron

Muitos leitores se surpreendem com o título deste texto. É como se eu afirmasse que não há oxigênio no ar nem água no mar. Porém, depois da exposição de meu argumento, espero demonstrar por que algumas ideias étnico-raciais não têm cabimento no Brasil e por que merecemos uma política cultural mais coerente com a evolução sociocultural de nosso país.

O primeiro esclarecimento – também um dos mais importantes – é sobre o uso da palavra “negro” nos Estados Unidos e na Inglaterra. Nestes países, asseguro que as demarcações étnico-raciais são mais precisas que no Brasil devido ao racismo e às políticas multiculturais que se aplicam neles. Evita-se, porém, o uso de “negro” (“negroes” no plural em inglês) porque este é o nome que se dava aos africanos que eram escravizados e arrastados ao trabalho nas colônias. Por isso, tais comunidades mantêm identidades africanas (mas hoje não digo que passe muito da cor da pele mais escura) com uso das palavras “black”, “black people” e “black neighbourhood”.

No Brasil, ao contrário, o termo “preto” é pejorativo, enquanto “negro” continua em uso apesar dos caminhos étnico-raciais inesperados (do ponto de vista de europeus racistas) e convergentes (do ponto de vista do papel de acolhimento que o Brasil cumpre nas relações internacionais) que nosso país tem trilhado. O sociólogo Gilberto Freyre descreve minuciosamente os hábitos culturais, sociais e sexuais em seu livro Casa grande e senzala (1933) que formariam, ao longo de séculos, nossa identidade nacional.

Estou pensando em algo assim como seres que resultam de combinações e interações étnico-raciais complexas e que dão origem ao que o antropólogo Darcy Ribeiro qualifica como uma civilização nova. Temos, assim, heranças ameríndias, africanas, europeias e asiáticas que nunca pararam de contribuir para a formação do ser brasileiro, que é infelizmente tão mal entendido.

A contribuição africana é evidente na dança (capoeira, samba), nos instrumentos musicais (atabaque, berimbau), na comida (acarajé, vatapá), na língua (batuque, dengo, fubá, moleque) e na religião (candomblé, umbanda), para dar alguns exemplos. Estes cultos, ademais, têm sido praticados também por pessoas de peles claras e que não nasceram na África.

Quero chegar ao ponto de certificar que todo brasileiro é afrodescendente, por mais clara que seja sua pele e que seu vocabulário contenha expressões depreciadoras como “isso é coisa de preto”, “vem cá, minha nega”, entre uma infinidade de outras que são a impressão digital da cultura brasileira. Há, nos discursos, menosprezo e sub-hierarquização de culturas africanas.

Numa conversa informal num dia desses sobre cotas universitárias para “negros”, uma colega ansiosa por trabalhar em Brasília me fez o questionamento seguinte: “Então você finge que o problema não existe?” É claro que não poderia deixar de mencionar a racialização das favelas, dos empregos, das batidas policiais, da noção de beleza, dos cárceres. Por isso, alerto que a discriminação no Brasil não é étnica, senão cutânea e socioeconômica. Contudo, somente a cor da pele não determina uma etnia.

Prossigo com o argumento de que um africano que foi trazido como escravo no século XVIII para as plantações e as minas, ou aquele que formou os quilombos, não é a mesma coisa que um brasileiro que tem pele mais escura que outro brasileiro e que, por isso, seja chamado “negro”. A memória de seus antepassados muda de geração a outra e deixa de ser apenas africana (sem anulá-la) para incorporar o “crisol de raças” que compõe o Brasil.

É interessante, igualmente, que eu já tenha lido os livros principais de Gilberto Freyre, mas nunca encontrado o termo pelo qual ele é tão criticado: “democracia racial”. A desinformação gera esse sintoma de ler alguma crítica e tomá-la como ideia original. É algo como por palavras na caneta ou na boca do escritor. Não creio, porém, que Freyre supôs que todas as etnias que aqui se encontraram tiveram o mesmo grau de influência na cultura brasileira (em termos hegemônicos), mas que no Brasil houve a formação de uma “raça cósmica” – para emprestar aqui os termos do mexicano José Vasconcelos – que reorganizaria nosso entendimento de etnias e identidades.

Tema que não cala é a versão maquiaveliana do subterfúgio étnico no Brasil: o sistema de cotas raciais demonstra que há racismo institucional no Brasil, o que, a meu ver, é motivo de uma revolta geral. O Estado gera divisões para que alguns interesses de manutenção da ordem desigual imperem, mas pouco colabora, neste sentido, para a formação cívica e educacional que brasileiros tanto almejam. Bato nesta tecla em vários de meus textos.

No entanto, confirmo que há que ter receio do que europeus e norte-americanos continuam tentando incutir na cabeça de brasileiros em termos de ideias multiculturais que não se aplicam nas nossas geografias. Falar de “brancos”, “negros” e “amarelos” no Brasil é tão papalvo quanto depositar algodão em pinheiro para simular árvore de Natal forrada de neve. Não temos que herdar posturas incivilizadas e racistas no Brasil. Nosso país olha para relações humanas que estão muito acima desses preconceitos.

A estratégia do governo brasileiro deveria ser outra: valorizar a herança africana na cultura brasileira, em vez de afirmar a presença de “negros” no Brasil como algo segregado da identidade nacional e que mereceria um pouco de inclusão. A cultura brasileira não teria cabimento sem a riqueza que herdou dos africanos, por mais trágica que tenha sido sua entrada ao país.

Não posso concluir este texto, no entanto, sem propor meu entendimento de que, assim como não há “negros” no Brasil, tampouco há “brancos”... 

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O autor Bruno Peron  é escritor e analista de Relações Internacionais, professor de idiomas (português e Inglês) e Voluntário de Organizações SEM Nadadeiras lucrativos.