O drama enfrentado pelos pacientes com distúrbios mentais em Ilhéus

Livres e precisando de ajuda
JBO/Maurício Maron

Cuidado. Ao circular pelas ruas de Ilhéus você pode estar diante de um "perigo invisível". Ou de uma vítima da precariedade do sistema público de saúde. O que difere uma condição da outra é o ponto de vista, obviamente. O grave - muito grave, por sinal - é que, em ambas as situações, de vítima ou de algoz, os protagonistas desta denúncia são verdadeiras "bombas ambulantes" prestes a explodir. Sem o mínimo controle, diga-se de passagem.

A denúncia é grave. Feita por uma psicóloga que já atuou na rede municipal mas que prefere, no momento, não ser identificada para evitar possíveis represálias. Ela revela que pacientes que necessitam de atendimento psicossocial em Ilhéus não estão podendo contar com serviços considerados essenciais para o tratamento e controle de doenças mentais.

Para esse tipo de doença, a profissional explica que pacientes que não estão permanentemente em crise - caso da maioria - necessitam de atendimento com cuidados intermediários entre o regime ambulatorial e a internação hospitalar, em um ou dois turnos de 4 horas, tudo executado por uma equipe multiprofissional especialmente preparada para este tipo de situação.

Mas não é o que se vê em Ilhéus, de acordo com a denúncia.

A profissional revela: o município chegou a possuir três unidades do Caps (Centro de Atendimento Psicossocial) funcionando em plena atividade, sendo uma para adultos, outra para crianças e adolescentes e uma terceira para tratamento de dependentes de álcool e drogas. Hoje, segundo informa, a principal unidade, localizada no bairro da Conquista, está fechada. O Caps AD (álcool e drogas), na avenida Canavieiras, idem. A infantil, funciona precariamente. No caso da unidade destinada aos adultos, a maior parte do serviço foi transferida para a Policlínica Halil Medauar, no bairro da Conquista. Ocupa apenas uma pequena sala, com atendimento limitado de uma psicóloga e um enfermeiro.

Diferentemente da realidade encontrada em Ilhéus, o Caps, além de ser um espaço de convivência e acompanhamento, deve funcionar com a produção de atividades socioeducativas, a exemplo de hortas comunitárias, atividades artisticas e esportivas.

Numa pequena sala da Policlínica, como desenvolver tudo isso? Impossível, obviamente.

Ademais, a Policlínica, segundo a denúncia, não está preparada para abrigar esse tipo de atendimento. "Trata-se de um espaço para atendimento ambulatorial. Imagine, uma mãe chega com uma criança recém-nascida para ministrar uma vacina, por exemplo, e se depara com um paciente com transtornos em um mesmo ambiente. Isso é grave", garante a profissional.

Socorro só em Itabuna - Para além destas dificuldades no atendimento clínico, os pacientes, em caso de crise aguda, teriam que ser deslocados por familiares para a clínica São Judas, em Itabuna. O espaço em Ilhéus destinado a este fim, o Setor de Psiquiatria do Hospital Geral Luiz Viana Filho, foi fechado em janeiro. "Vivemos uma situação extremamente grave. Não temos atendimento nem internação adequadas e estas pessoas estão nas ruas, não se sabe em que circunstâncias", revela.

Morte - Na quinta-feira passada esta preocupação da psicóloga chegou ao extremo. Um paciente que há mais de seis anos frequentava o Caps da Conquista - e neste periodo ela assegura que ele nunca necessitou de internação - foi assassinado próximo à unidade fechada.

Em crise, testemunhas acusam o jovem - que sofria de esquizofrenia - de ter agredido uma pessoa. Ele levou uma facada e morreu na hora. A profissional assegura que há uma relação direta da crise e do local onde houve o homicídio. "Há pacientes que sentem a crise e sabem como devem proceder, onde e quem procurar. Ele, certamente foi ao local onde o Caps funcionava em busca de ajuda. Encontrou a porta fechada".

O paciente morreu a poucos metros da antiga unidade, no alto dos Carillos.

Segundo avaliação da psicóloga, caso a unidade estivesse funcionando, os primeiros procedimentos de rotina seriam realizados até uma avaliação psiquiátrica mais aprofundada para saber se era ou não necessária a internação. 

A versão do governo - A reportagem do Jornal Bahia Online procurou a Coordenadora de Média e Alta Complexidade, setor da secretaria municipal de Saúde responsável pelo funcionamento do Caps, para falar sobre a denúncia. A enfermeira Fernanda Ludgero reconheceu uma série de problemas enfrentados pelos pacientes das unidades e disse que o maior "gargalo" está justamente na falta de pessoal - médicos, psiquiatras, enfermeiros e auxiliaraes - para atender a demanda. "Tenho a faca e o queijo nas mãos. Mas não tenho como cortar", sentenciou.

Ela alega que não faltam medicamentos, alimentação e insumos para produção de ofícios em terapias. "O que falta mesmo é profissional para trabalhar. Temos apenas duas equipes, cada uma com apenas um médico psiquiatra, assim mesmo, cedido pelo governo federal, trabalhando em um turno de um dia da semana". revela. Segundo Fernanda, além de não encontrar médicos dispostos a compor a equipe, a burocracia do serviço público impede que o governo realize contratações temporárias. "É a realidade, não dá para esconder", desabafa.

Sobre o fechamento de unidades, a coordenadora explica que o Caps Adulto, na Conquista, apresentava sérios riscos para trabalhadores e pacientes que frequentavam o local. Além de o prédio alugado estar bastante danificado, os assaltos à unidade estavam sendo constantes. "Foram sete assaltos somente no ano passado. Teve caso de médico chegar para trabalhar e encontrar assaltante lá dentro no gabinete", revela.

Fernanda Ludgero afirma que a mudança foi necessária por que, inclusive, os funcionários, como medo do pior, já estavam se recusando a trabalhar no local. Ela confirma que, temporariamente (desde novembro do ano passado), o atendimento está mesmo funcionando em uma sala da Policlínica mas que, nos próximos dias, os doentes passarão a ser atendidos e acompanhados na antiga sede do Caps AD, na avenida Canavieiras. "Era uma dificil decisão que precisava ser tomada. Sabíamos que não era a escolha ideal, mas se fechasse de vez piorava", assegura.

E o Caps AD, então? Esse, garante a coordenadora, nunca existiu de fato, nem de direito. O serviço, criado pela gestão anterior, não havia sido autorizado pela Sesab, a secretaria estadual de Saúde, pelo fato de nunca ter equipe técnica disponível para a população. Funcionando em um local mais adequado, a Prefeitura reconhece que hoje só tem o Caps Infantil, em um prédio próximo ao Hospital de Ilhéus, na Cidade Nova. Atualmente, o município de Ilhéus acompanha uma média de 100 pacientes adultos e 60 crianças, por mês. Números reconhecidos pela própria coordenadora como bem abaixo da realidade encontrada nas ruas. A psicóloga que denuncia as dificuldades, assegura que, enquanto esteve trabalhando no Caps, anos atrás, chegou a registrar uma média de mil atendimentos/mês.

Questionada sobre a diferença no tamanho da estrutura do antigo Caps na Conquista -uma espécie de sítio onde os pacientes tinham a condição de praticar esportes e estimular a criatividade em ambientes abertos, com maior convivência com a natureza -, para uma casa em uma área movimentada da avenida Canavieiras, a coordenadora reconheceu a limitação. "Não vai dar realmente para estender uma rede de vôlei, nem jogar futebol. Mas há sim possibilidades de fazer algumas oficinas, de prestar um bom serviço", assegura. O preconceito também é, na opinião dela, um problema enfrentado até para se conseguir um imóvel para a instalação da unidade. "Ninguém quer alugar para funcionar um Caps, com medo que, depois, o imóvel fique estigmatizado como sendo um local que abrigou doentes mentais", lamenta.

Dias melhores - Fernanda Ludgero projeta melhorias a partir da possibilidade de contratação de pessoas. Ela garante que o pior já passou, sob o ponto de vista financeiro. Ao assumir o governo, em janeiro de 2013, a atual adminstração teria encontrado um grave problema: a prestação de contas dos últimos quatro meses de 2012 não havia sido informado ao sistema do Ministério da Saúde. "Isso posteriormente teve reflexo na liberação de recursos. Tínhamos direito a um repasse de 66 mil reais por mês para a manutenção das duas unidades e passamos a receber apenas 8 mil. Isso foi até agosto do ano passado. Agora já foi regularizado e voltamos ao valor a que, de fato, temos direito", afirmou.

Um outro problema que preocupa a coordenadora é a decisão do governo do estado em fechar o Anexo Psiquiátrico do Hospital Geral. O de Ilhéus foi fechado no início deste ano. A justificativa é de que o estado se adequa à nova política nacional de atendimento a pacientes com distúrbios, propondo a desinstitucionalização dos anexos psiquiátricos. "Tinha gente que não era só paciente. Tinha gente que morava lá, por falta de onde ir", revela. "Hoje temos a opção de levar para Itabuna. Mas não é a solução. Lá no São Judas tem limitações de vagas, também".

Indagada pela reportagem sobre qual seria a condição ideal para atendimento aos pacientes de Ilhéus, considerando, inclusive, o crescente índice de distúrbios identificados nas ruas da cidade, muitas vezes provenientes de reações ao uso de drogas entre adolescentes, Fernanda Ludgero foi enfática: é desenvolver, de fato, a nova proposta do Ministério da Saúde, sem a presença de anexos psiquiátricos, mas com a presença permanente de profissionais nas ruas, interferindo na realidade encontrada.

A questão é: se Ilhéus não consegue fazer o mínimo do seu dever de casa, como se chegar então ao ideal?