A Faxineira de Ilusões e a música do menino

Ana Virgínia Santiago
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Sou Faxineira, todavia de vez em quando preciso parar... Amparo o meu corpo cansado numa vassoura - que tem a missão de limpar, jogar fora, expulsar sujeiras, dejetos, degradações - e busco  outros espaços.

Sou Faxineira, mas preciso descansar. Paro diante de uma casa e, da janela, espreito o que me atraiu. Escuto um menino tocar!

A música tem poderes...acalanta dores ou as desperta. Acalma o coração, aguça sentimentos, faz companhia...

Paro e escuto um menino  tocar.

Que dor é essa que chega até mim, oprime e dá em minh’alma um  abraço “colado, macio” (diria Clarice, a Lispector) para não mais sair? Que notas embalam o meu espírito fazendo com ele uma solidária dança de amor e temor?

Ouço, sinto e pressinto. É o sonho de um menino iluminado em sua expressão de dor e amor, de vontades, no momento, impossíveis de concretizar. É a música conversando com sua emoção.

Sou Faxineira. Esqueço que preciso varrer, varrer, esfregar, limpar e aguço o meu sentido para entender o que ele está querendo falar com as mãos e a emoção.

O que estou escutando é saudade... Quanta vontade de ajudá-lo!

Preciso sair daqui, respirar melhor, dar ao meu angustiante sentimento a oportunidade de soltar a dor contida, o grito abafado, a saudade desorientada que tomei para mim.

Sou Faxineira mas, de vez em quando, necessito absorver sonhos, desejos urgentes, soltar os balões de minha imaginação para acalentar a alma macerada, também, de saudades, inquietações e de questionamentos que não são esclarecidos.

Preciso sair daqui, deixar que a minha essência dance no infinito. Busco o meu improvisado corcel que recebi do meu amigo real, majestoso poeta (hoje em outra galáxia, talvez) que se escondia nas leis, sentia tão bonito e, com a experiência da idade, me dava as mãos estimulando as minhas quimeras.

Vôo com o seu corcel que agora o chamo de meu e invado o abismal espaço destinado aos sonhadores, levada pelo indômito animal, com ancas  reluzentes, crina desgrenhada e incontroláveis cascos e alados ...

Tudo é permitido aos sonhos...

Preciso esquecer o que ouvi pelas mãos daquele menino. Preciso voar para reenergizar o meu coração. No momento, nada posso fazer...

Vôo, vôo para ver do alto o meu mundo real, cada vez menor, sumindo para que eu possa renascer.

Sou Faxineira de Ilusões porém é vital, em momentos, que abandone a minha função para sobreviver.

Atinjo o espaço, abrigo dos astros, reverencio Vênus-alva estrela que me dá recados silenciosos, respingo o rosto de estrelas, banho o corpo de luar.

Sobrevoo as águas e pouso etérea e amante num espaço adocicado pelo amor e grito as minhas saudades, solto as dores e as impossibilidades que apertam meu coração e aceno feliz para a liberdade que consigo  internalizar.

A música que escutei me acompanha. Revolvo o pensamento no pensamento entristecido  do menino e crio forças no espaço  estelar que me torna imortal para lutar com todos os meus sentidos contra a tristeza que me abateu.

Preciso da esperança para sobreviver! Para ajudar o menino quando eu voltar...

Esforço-me para não cristalizar as lágrimas no rosto. Tenho necessidade do brilho no olhar para continuar aqui o meu labor, só que polindo estrelas, acendendo as luzes do firmamento, afastando as nuvens escuras para outras solidões bem distantes, reencontrando Capricórnio que inaugura o Zodíaco do Extremo Oriente, visitando Antares, colhendo um punhado  de estrelas maduras e semeando constelações.

Quem sabe o menino não olha para os céus e recupera a alegria?!

Sou Faxineira. Do alto aguardo o sol ressurgir trazendo a manhã.

Preciso voltar pois daqui a pouco chegará o dia e, com ele, a alegria dos cantantes que tanto me fascinam.

Sou Faxineira de Ilusões. Aquieto o meu indomável corcel para ele descansar.

Acordo com o dia abraçando o azul do céu que na noite me abrigou e protegeu meus sonhos e ouviu meu lamento pelo menino que toca.

O dia é o espelho que me reflete e me ajuda ao meu reencontro. Volto ao meu labor, consciente do que sou.

Sou aquela que varre, limpa, esfrega, tira dos monturos os dejetos. Faxino ilusões...

Sou a mulher-faxineira que encarna todas as mulheres desajeitadas, humilhadas, inexpressivas, maceradas de ausências, silenciosas, banhadas pela brisa e encharcadas de coisas tristes, com pés sangrando de tanto andar, andar, andar, varrer, varrer.

Vejo o dia acordar, mas a música do menino adormeceu no meu coração.

Ela tem poderes, acalanta dores ou as desperta. Também impulsiona vontades e realiza sonhos, transformando-os em projetos reais.

Sou Faxineira. 

Ana Virgínia Santiago é jornalista, poeta e cronista no sul da Bahia.